12.1.12

Legitimidade versus legibilidade

Um dos blogs que acompanho com regularidade é o e-Boca Livre, do sociólogo Carlos Alberto Dória. 

Na semana passada, Dória publicou um interessante texto intitulado "Gastronomia Brasileira: legitimidade e legibilidade", que faz uma análise da gastronomia do nosso país. O autor reflete sobre a diferença entre o que são os produtos "legítimos" e os "legíveis" da culinária brasileira.

"Legitimidade se refere a algo “brasileiro”, a exemplo do tucupi, mesmo para quem jamais o tenha experimentado - o que é a maioria da população brasileira. (...) Legibilidade diz respeito àquilo que, nativo ou exótico aclimatado, é reconhecido claramente como “brasileiro”, a exemplo do arroz com feijão que todo mundo conhece", escreve o sociólogo.

Quando vou a um restaurante e peço, por exemplo, um filé a parmigiana com purê de batatas, tenho um patamar de exigência mais alto do que se pedir um "tacacá" - prato típico da Amazônia feito com tucupi, goma de mandioca, jambu e camarões. Isto porque já provei o primeiro prato várias vezes e sei reconhecer quando este é mal preparado. Já o tacacá, provei três ou quatro vezes na vida. Assim, não tenho vários registros sensoriais deste prato. Minha expectativa emocional ao tacacá será mais baixa do que, digamos, a uma pizza do Brás (que adoro e já comi algumas inesquecíveis), pois não ficarei "aguando" de antemão.


Tacacá - um produto "legítimo" e não "legível" 
da culinária brasileira


É raro provarmos um arroz com feijão e dizer "uau, que maravilha!", pois este é um prato corriqueiro do dia-a-dia. E justamente por isso, por ser tão facilmente reconhecido por nossa memória gustativa, que quando nos encantamos com um simples arroz com feijão, provavelmente iremos exclamar que "o cozinheiro que fez este prato é muito bom de serviço". 

Em 2011, tive o privilégio de jantar no restaurante da Roberta Sudbrack. Um dos pratos servidos foi costelinha com angu, dueto que já provei n vezes. Porém, jamais provei uma costelinha com angu tão saborosa como aquela. E por isso a experiência se tornou inesquecível. 

Dória segue sua análise escrevendo que "até onde é legítimo falarmos em “culinária brasileira” quando usamos ingredientes nativos de consumo restrito (...). A Amazônia construída, o cerrado construído à mesa, assim como as velhas tradições que caíram em desuso, são invocadas mais licenças poéticas do que outra coisa. [A chef Helena Rizzo], em suas pesquisas, já utilizou o puxuri, assim como hoje utiliza o licuri fresco. Tudo isso, é claro, vai traçando um perfil culinário legitimamente brasileiro. Mas é um Brasil estranho à mesa para os próprios brasileiros. Em outras palavras, um Brasil quase ilegível, para não dizer incomível ou incomido. Ele, de fato, só existe - e brilha - nos restaurantes exclusivos de São Paulo (...) Por outro lado, (...) [o chef ] Rodrigo Oliveira mostrou que segue um caminho inverso: não persegue ingredientes raros e se debruça sobre os mais corriqueiros, como seu “mocofava”, seu torresmo ou seu  “escondidinho” atestam. A pesquisa de Rodrigo toma por base o comer popular, fazendo variações em torno dele - inclusive variações técnicas". 

Sinto que a gastronomia brasileira mostrada pela mídia especializada está vinculada diretamente aos restaurantes mais elitistas de São Paulo e Rio de Janeiro. Porém, acredito ser no interior do país, em pequenos distritos acessados por estradas de terra, que encontramos a "legítima e legível" cozinha brasileira.

Dória defende que "uma gastronomia nacional de ponta talvez dependa, para se afirmar aqui, mais da legibilidade do que da legitimidade. No exterior, talvez seja o inverso, dado que a audiência está mais interessada em conhecer a Amazônia do que o Brasil em geral"

É uma pena notar que muitos chefs que desenvolvem um cardápio de culinária brasileira conhecem melhor a Europa do que o próprio país.

Pergunto: será que devemos pensar na gastronomia brasileira visando os estrangeiros? Será que o que mais buscamos é visibilidade externa? Repetir o que a culinária peruana soube fazer tão bem? Confesso não ter uma resposta para estas questões. 

Quando será que o Brasil irá despertar para o turismo gastronômico? Quando será que os brasileiros vão preferir ir "à roça" para comer uma "comida da roça"?

O sociólogo utiliza o exemplo vanguardista da Espanha para indagar sobre quais seriam os passos adequados que devem ser traçados pela culinária brasileira. [ Ferran Adrià] e um grupo de jovens cozinheiros mergulharam na identificação dos sabores reconhecidos pelos espanhóis. O bacalhau pil-pil, os produtos do porco, a merluza, a cebola, o alho, a batata, os pimentões, os frutos do mar e assim por diante, forneceram o terreno sólido, popular, para os experimentos técnicos consagrados (...).  Hoje essa culinária apresenta infinitas variações pirotécnicas (...)  sem ter se distanciado daquela base de sabores tão facilmente reconhecíveis. Os espanhóis vanguardistas nunca abriram mão da legibilidade".

Acredito que é essencial que os brasileiros [Estado, chefs, mídia, etc] passem a enxergar e a valorizarem o que existe nos rincões de nosso país. Mas não apenas trazendo os produtos do interior para a cidade. É preciso levar as pessoas da cidade para conhecer o interior. Como bem dizia o jornalista literário Gay Talese, é preciso "sujar as botas". Espero que não aconteça nas cozinhas (apesar de desconfiar que já está acontecendo) o que houve de um tempo para cá nas redações: a preguiça reinante de escrever uma história sem a garimpagem que deve ser feita na rua. 

Um pé de moleque provado em Piranguinho é diferente do mesmo pé de moleque quando provado em Belo Horizonte.


Em Piranguinho, centenas de pessoas
 vivem do pé de moleque


Carlos Alberto Dória questiona: "por que se privilegia hoje, entre nós, na gastronomia de ponta, a busca da legitimidade em detrimento da legibilidade?  (...) Desde o século XIX as elites brasileiras passaram a tomar a cultura estrangeira como modelo à mesa e, pois, muito facilmente passaram a desejar uma culinária francesa (como, aliás, na maior parte dos países). Isso resultou em uma dualidade notável: há o comer popular e há o comer das elitesO comer popular apresenta uma riqueza e diversidade que depende mais dos ecossistemas regionais do que dos suprimentos externos e, inversamente, a alimentação urbana das classes médias e altas depende mais das modas externas e dos fluxos de importação, sendo relativamente independente dos ecossistemas brasileiros".

O sociólogo segue sua análise alertando que "os chefs brasileiros procuram solucionar a ruptura entre o popular e o elitismo apelando para uma idéia de “terroir” que quase se confunde com uma posição no GPS, deixando de lado a rica vivência cultural que faz parte das emoções do comer e, assim, apostando numa espécie de exotismo interno"

Não basta que o garçom ou o chef queiram explicar detalhadamente à mesa que determinado produto vem de um pequenino e humilde produtor do interior do sertão baiano. Isso só alimenta a birra do comensal pelo excesso de serviço que rege vários restaurantes das capitais brasileiras. Hoje em dia, há até casas com carta de águas minerais (será que vai surgir um sommelier de águas? Só falta essa!). Ou descrições de pratos pra lá de pretensiosas como "Ovo de galinha caipira cozido a baixa temperatura servido sobre leito cremoso de purê de couve-flor orgânica polvilhado com farofa crocante de milho flocado e bacon de porco selvagem".

Felizmente, Dória enxerga esperança em relação ao futuro da gastronomia brasileira. "Conciliar legitimidade (enraizamento territorial) e legibilidade (enraizamento histórico no sistema culinário no qual comemos) é o caminho mais difícil. Exige dosar o exótico de nós mesmos com a banalidade de nós mesmos. Mas talvez o momento seja único em nossa história gastronomica, graças a uma maior tolerância às novidades", observa. 

É verdade. A cada dia parece haver mais "gastrochatos" ávidos pelos modismos, sempre atrás da nova "tendência" gastronômica. Espero que estas mesmas pessoas também estejam dispostas a querer conhecer o interior do país que habitam. Desde que sujando as botas.   

6 comentários:

ANA MARIA CUNHA disse...

Olá, Rusty !!

Como sabes, sou fã do Trilhas do Sabor !!

Estou no seu facebook também !

Rusty, adorei o texto do Sociólogo Carlos Alberto Dória sobre a legitimidade e legibilidade gastronômica !

Entretanto, como possuo raízes do Norte de Minas, pois, a Sra. Minha Mãe é de lá, vejamos e agora me complicou:

1) Feijão de andu é legítimo ou legível ?

2) Paçoca de carne de sol, é legítimo ou legível ?

3) A fruta umbu é legível ou legítima ?

4) Arroz com pequi e frango caipira é legítimo ? Acertei ?

5) Bolo de fubá feito com manteiga de garrafa ? Legítimo ?

Todo mundo já conhece não é mesmo ?

Vou acompanhar sempe o seu blog !!

Adorei participar !! Sucesso !!

Pode ser pra dois disse...

Que texto lindo, Rusty!

A teoria do Carlos Dória é excelente, mas você fez os melhores comentários complementares.

É preciso valorizar o que se como de fato, não invenções mirabolantes com ingredientes exóticos, ainda que nacionais.

Abraço,
Priscila Ferreira.
www.podeserpradois.blogspot.com

Rusty Marcellini disse...

Oi Ana, que ótimo saber que assiste o Trilhas do Sabor. Sobre suas perguntas, algumas são difíceis de responder. Acho que, entre as opções, legíveis mesmo só feijão andu, paçoca de carne e bolo de fubá (pois ainda tem muita gente que desconhece o sabor de umbu e pequi). Abraço, Rusty.

Rodrigo Vianna disse...

Sêo Rusty,

Hoje sai de Pedro Leopoldo pra comer coxinhas... A da Vila Árabe é enorme e a do Docê Meu incomparável! Que delícia essas trilhas... Espero ansioso por novas! Ave!

Rodrigo Vianna disse...

Sêo Rusty,

Hoje saí de Pedro Leopoldo para comer coxinhas. A da Vila Árabe é realmente enorme e a do Docê Meu incomparável! Que delícia essas trilhas... Espero ansiosamente por novas! Ave!

Rusty Marcellini disse...

Oi Rodrigo, realmente são cozinhas muito boas, né? Abração, Rusty.