1.10.09

Pintando Pratos de Cerâmica

Durante o CBN Sabores BH de 01 de outubro de 2009, Marcelo contou para os ouvintes que lera um texto que escrevi em 2004 sobre os pratos da Associação Boa Lembrança, tema do programa. Prometi então publicá-lo no blog. Portanto, segue este abaixo:



Pintando Pratos de Cerâmica
por Rusty Marcellini

Se não fosse pela incapacidade de um vendedor de queijo de cabra, talvez os pratos da Boa Lembrança sequer teriam existido.

Eduardo era o dono das cabras, Pituca e Olga seus amigos. Eduardo produzia um queijo de cabra excepcional, mas não conseguia vendê-los a nenhum dos restaurantes do distrito de Itaipava. Olga resolveu ajudá-lo e o desafiou, dizendo que conseguiria colocar o produto no mais respeitado restaurante da região, o Locanda Della Mimosa. Para isso, marcou um encontro com o proprietário e chef do restaurante, Danio Braga. Este provou do queijo e gostou. Porém, algo mais aconteceu no encontro.

Alguma coisa deixava Danio inquieto, incomodado: ele precisava de uma ajuda para concretizar um de seus projetos. O chef, então, sem mais nem menos, decidiu perguntar a Olga se conhecia alguém que trabalhasse com pratos de cerâmica. Ela respondeu que sim: seu marido Pituca. Danio jamais esperava por tal resposta e, incrédulo, agendou um encontro com o ceramista.

Danio Braga, um italiano radicado no Brasil, imaginava fundar uma associação semelhante a Unione Ristoranti Del Buon Ricordo, que existe há mais de 40 anos em seu país natal. Seu intuito era que cada vez que um determinado prato do cardápio fosse pedido, o cliente recebesse, ao final da refeição, um prato de cerâmica com um desenho da receita que degustara. Agora, bastava explicar o projeto a Pituca.

O primeiro encontro entre os dois aconteceu em meados de 1993. Após a explicação do projeto, Pituca perguntou quantos pratos seriam necessários mensalmente. Danio não soube respondê-lo. Perguntou, então, como seria o desenho, mas também não conseguiu uma resposta exata. Porém, apesar do encontro ter sido um pouco vago, foi ali que surgiu uma idéia de sucesso.

Dias depois, Pituca foi convidado para almoçar no Locanda. Danio contou que havia contactado alguns donos de restaurantes e estes mostraram entusiasmo com sua idéia. Pituca disse que precisaria de uns seis meses para preparar o forno, os pratos, o esmalte etc. Danio respondeu que tudo bem, e serviu uma “porquetta alla Romana”. A receita foi o primeiro esboço de um prato da Boa Lembrança - o desenho de um porquinho assado ao lado de colunas romanas.

Em março de 1994, a Associação da Boa Lembrança foi lançada num almoço no Locanda Della Mimosa.

O ateliê de Pituca e Olga começou a produzir os pratos da Boa Lembrança com apenas um funcionário empregado. Em 2004, eram dez empregados fixos, além de três diaristas. Cada prato é pintado manualmente, sendo Olga a encarregada do desenho original, que é válido pelo período de um ano. Conforme a quantidade da demanda, uma nova leva de pratos é produzida e enviada para repor o estoque do restaurante.

A criação de cada prato acontece da seguinte maneira: inicialmente, o restaurante envia a receita do prato. Baseado nela, Olga pinta o primeiro esboço, fotografa o desenho e envia por e-mail ao proprietário do restaurante. Após eventuais comentários, um novo esboço, se necessário, é feito. Com a mútua satisfação, um carimbo com o contorno do desenho é produzido para auxiliar as funcionárias na reprodução da pintura original. Após ser pintado, cada prato recebe um banho de esmalte antes de ir ao forno, garantindo que não sofra alterações. Quando a temperatura alcança em torno de 1000oC, o esmalte derrete, penetra nos poros do prato de cerâmica, e fixa a tinta. Após o esfriamento do forno, um período de aproximadamente 12 horas, o prato está pronto para seguir para o associado.

A parede do ateliê é decorada com inúmeros pratos da Associação da Boa Lembrança. Muitos são raridades. Pituca conta haver leilões na internet, aonde os pratos são disputados a altos preços, além de clubes de colecionadores que efetuam trocas entre si.

Num canto da parede está o mais raro dos pratos, o do restaurante Aquarella. Instantes antes da associação ter sido lançada, em março de 1994, cada restaurante recebeu uma leva de 300 pratos. Porém, o que não era esperado é que o restaurante fosse fechar as portas antes da associação ser lançada oficialmente. Os trezentos pratos do Aquarella ficaram encalhados. Provavelmente, acabaram sendo doados a amigos e parentes do proprietário, sem que este soubesse que anos depois seria disputado a tapas por colecionadores fanáticos.

Existem ainda os pratos cujos donos de restaurantes são supersticiosos ou cheios de manias. Uma das associadas sempre exigia que seus pratos tivessem o desenho de um gato, mesmo apesar dele jamais constar em receita alguma. O motivo da mania era sua paixão pelo bichano, o qual também poderia ser visto numa tatuagem em sua nuca por quem visitasse seu restaurante em São Paulo.

Pituca tem seu desenho favorito, uma série de galinhas desenhadas com traços finos dançando o can can. O prato referido é o do restaurante Lês Artistes, no Rio de Janeiro, cuja receita era um “Cuisse de Poilet au Poivre Rouge”, de 1994.

O ceramista conta que há ainda os best sellers. Em 2004, por exemplo, os de maior demanda são a receita “Maracutu Imperial”, do restaurante Beijupirá, em Porto de Galinhas, PE; o “Picadinho do Barão”, do restaurante Esch Café, no Rio de Janeiro; e o “Camarão à Eça de Queiroz”, do Oficina do Sabor, em Olinda, PE.

Atualmente, prato mais difícil de conseguir é o da VARIG. Este só é oferecido aos passageiros de primeira classe e em determinadas rotas aéreas, que são alteradas mensalmente. No ano de 2004, o prato da Boa Lembrança da VARIG traz a receita de codornas marinadas em vinho branco, acompanhadas por batatas assadas com a casca e salteadas com manteiga e sálvia, servidas sobre um leito de cogumelos shitaki, shimeji e Paris. A receita foi criada por Alex Atala, chefe proprietário do Restaurante D.O.M em São Paulo. Porém, para conseguir degustar a receita, o passageiro deve desembolsar, por um trecho barato como Rio – Miami, a bagatela de aproximadamente 6.000 dólares. Entretanto, há colecionadores que dizem haver comissários de bordo e até pilotos dispostos a negociar o prato por valores bastante inferiores aos da passagem...

Obs: Quanto ao vendedor do queijo, seu negócio não foi para frente e ele acabou vendendo todas suas cabras.

Dados:

Em 2004, a Associação da Boa Lembrança contava com 60 associados, distribuídos por 14 estados brasileiros. São vendidos, em média, 9.000 pratos por mês, sendo que o tempo gasto para desenhar cada um é, em média, de 15 a 20 minutos.

Associação da Boa Lembrança
www.boalembranca.com.br



Um comentário:

Nina H disse...

Muito interessante!
Gostei de saber.